Carta
enviada ao jornal O globo como
comentário ao artigo do prof. Daniel Aarão Reis “A ditadura
civil-militar”, publicado no caderno Prosa & Verso de 31 de março de 2012.
Renato Luís do Couto Neto e Lemos
O artigo do professor Daniel Aarão Reis toca em pontos
cruciais do enquadramento histórico do golpe de 1964 e do regime político que a
partir dele se construiu. Trata-se de texto que suscita inúmeras reflexões, infelizmente
demasiadamente numerosas para o espaço desta carta. O autor desfruta de elevada
posição no meio acadêmico, em especial junto a jovens historiadores, o que
justifica a seleção de um tópico em particular para discussão.
O professor inicia o artigo afirmando: “Tornou-se um lugar
comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de ‘ditadura militar’.
Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes
interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que
esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da
ditadura em particular”.
Desde logo, me parece que constitui simplismo reduzir uma
classificação que sintetiza interpretações de processos históricos complexos a
um fenômeno de memória resultante da rotina e da pobreza cognitiva. Por que
entender a expressão “ditadura militar” como produto da memória e não, também e
principalmente, de um conhecimento construído de acordo com premissas
teórico-ideológicas sistemáticas? Aliás, ele mesmo tangencia este aspecto, embora
de maneira apenas descritiva, quando aponta quem, do seu ponto de vista, teria
interesses em defender o uso da expressão. Ela é, de fato, fraca em termos
explicativos, mas a que ele escolhe como alternativa não é muito mais forte. Há indicações em depoimentos de época, artigo e livros produzidos –
alguns, há mais de 40 anos – que nos permitem apontar a insuficiência da
adjetivação do golpe de 1964 e do regime que a partir dele se instalou no país
como “civil-militar.”
Embora já se tenha, a respeito, um conhecimento estabelecido teórica e
empiricamente na historiografia, à medida que o tempo nos distancia dos fatos
algumas revisões interpretativas se dedicam a reinventar a roda. Nos registros
dos 40 anos do Ato Institucional n. 5 (13/12/1968), na atual discussão sobre a
lei de anistia e no artigo do professor Aarão Reis em questão, trata-se como a
última descoberta nos estudos sobre o golpe e a ditadura a informação de que
tanto a derrubada do presidente João Goulart quanto a sustentação do regime que
se seguiu contaram com “apoio civil”. Tal constatação, trivial para quem viveu
os fatos ou começou a estudá-los já em priscas eras, pode parecer um avanço
interpretativo, se comparado com a redução do golpe e da ditadura ao seu
componente militar, operação, de fato, muito adequada a setores civis
preocupados em negar a sua participação neles. Constitui, no entanto, um freio
na elucidação do seu sentido histórico, porque dilui na vaga categoria “civil”
o conteúdo classista do golpe e da ditadura, sobejamente conhecido. Civis –
administradores, bancários, camponeses, economistas, empresários, escritores,
estudantes, jornalistas, juristas, operários, políticos, professores etc. –
houve, desigualmente, entre vencedores e derrotados, entre torturadores e
torturados, entre beneficiados e prejudicados pelo golpe e pela ditadura. O
apoio civil ao golpe e à ditadura – há muito reconhecido por analistas
minimamente sérios – é uma informação muito utilizada por segmentos militares
para legitimá-los – ao golpe e à ditadura. Para se distinguir dos intelectuais
orgânicos do regime, cabe qualificar esse “apoio”, enfatizando que não se
tratou de um golpe ou uma ditadura “apoiados” por civis, mas de uma operação
política de uma parte da sociedade – que incluía civis e militares − contra
outra − que, igualmente, envolvia civis
e militares.
Reiterar a informação do “apoio civil”, conferindo-lhe o status de
novidade historiográfica, estimula os interessados em geral, e os jovens
historiadores em particular, a adotarem uma abordagem temerosa de ir a fundo na
conexão dos eventos em questão com poderosos interesses classistas, cujo
momento de fastígio em termos de usufruto material do poder (1968-1973)
o autor vê como paradoxal: “Paradoxalmente, os chamados anos de
chumbo. Porque foram também, e ao mesmo tempo, anos de ouro para não poucos”. Falso paradoxo,
porque há uma conexão – que o autor não aponta – entre os dois aspectos desses “anos”:
foram de ouro para “não poucos” porque “de chumbo” para muitos, que ele sequer
menciona. Há farta evidência de que o “Milagre brasileiro” – a fábrica do
“ouro” desses anos – custou à esmagadora maioria da classe trabalhadora
brasileira o “chumbo” do arrocho salarial, dos serviços públicos degradados e
outras mazelas que se ausentaram da memória do professor.
Em suma, jogar o foco da análise de um processo de cruenta
disputa política numa sociedade civil metafísica, descarnada, sem conexões com
classes e categorias sociais portadoras de projetos classistas é induzir o
respeitável público à mistificação da história. Uma abordagem que falseia o estado atual do conhecimento e não o faz
avançar um milímetro sequer. Parafraseando o professor Aarão Reis, ela ”não
contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em
particular”.
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