sábado, 6 de outubro de 2012

A “ditadura civil-militar” e a reinvenção da roda historiográfica




Carta enviada ao jornal O globo como comentário ao artigo do prof. Daniel Aarão Reis “A ditadura civil-militar”, publicado no caderno Prosa & Verso de 31 de março de 2012.

Renato Luís do Couto Neto e Lemos

O artigo do professor Daniel Aarão Reis toca em pontos cruciais do enquadramento histórico do golpe de 1964 e do regime político que a partir dele se construiu. Trata-se de texto que suscita inúmeras reflexões, infelizmente demasiadamente numerosas para o espaço desta carta. O autor desfruta de elevada posição no meio acadêmico, em especial junto a jovens historiadores, o que justifica a seleção de um tópico em particular para discussão.
O professor inicia o artigo afirmando: “Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de ‘ditadura militar’. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular”. 
Desde logo, me parece que constitui simplismo reduzir uma classificação que sintetiza interpretações de processos históricos complexos a um fenômeno de memória resultante da rotina e da pobreza cognitiva. Por que entender a expressão “ditadura militar” como produto da memória e não, também e principalmente, de um conhecimento construído de acordo com premissas teórico-ideológicas sistemáticas? Aliás, ele mesmo tangencia este aspecto, embora de maneira apenas descritiva, quando aponta quem, do seu ponto de vista, teria interesses em defender o uso da expressão. Ela é, de fato, fraca em termos explicativos, mas a que ele escolhe como alternativa não é muito mais forte.  Há indicações em depoimentos de época, artigo e livros produzidos – alguns, há mais de 40 anos – que nos permitem apontar a insuficiência da adjetivação do golpe de 1964 e do regime que a partir dele se instalou no país como “civil-militar.”
Embora já se tenha, a respeito, um conhecimento estabelecido teórica e empiricamente na historiografia, à medida que o tempo nos distancia dos fatos algumas revisões interpretativas se dedicam a reinventar a roda. Nos registros dos 40 anos do Ato Institucional n. 5 (13/12/1968), na atual discussão sobre a lei de anistia e no artigo do professor Aarão Reis em questão, trata-se como a última descoberta nos estudos sobre o golpe e a ditadura a informação de que tanto a derrubada do presidente João Goulart quanto a sustentação do regime que se seguiu contaram com “apoio civil”. Tal constatação, trivial para quem viveu os fatos ou começou a estudá-los já em priscas eras, pode parecer um avanço interpretativo, se comparado com a redução do golpe e da ditadura ao seu componente militar, operação, de fato, muito adequada a setores civis preocupados em negar a sua participação neles. Constitui, no entanto, um freio na elucidação do seu sentido histórico, porque dilui na vaga categoria “civil” o conteúdo classista do golpe e da ditadura, sobejamente conhecido. Civis – administradores, bancários, camponeses, economistas, empresários, escritores, estudantes, jornalistas, juristas, operários, políticos, professores etc. – houve, desigualmente, entre vencedores e derrotados, entre torturadores e torturados, entre beneficiados e prejudicados pelo golpe e pela ditadura. O apoio civil ao golpe e à ditadura – há muito reconhecido por analistas minimamente sérios – é uma informação muito utilizada por segmentos militares para legitimá-los – ao golpe e à ditadura. Para se distinguir dos intelectuais orgânicos do regime, cabe qualificar esse “apoio”, enfatizando que não se tratou de um golpe ou uma ditadura “apoiados” por civis, mas de uma operação política de uma parte da sociedade – que incluía civis e militares − contra outra −  que, igualmente, envolvia civis e militares.
Reiterar a informação do “apoio civil”, conferindo-lhe o status de novidade historiográfica, estimula os interessados em geral, e os jovens historiadores em particular, a adotarem uma abordagem temerosa de ir a fundo na conexão dos eventos em questão com poderosos interesses classistas, cujo momento de fastígio em termos de usufruto material do poder (1968-1973) o autor vê como paradoxal: “Paradoxalmente, os chamados anos de chumbo. Porque foram também, e ao mesmo tempo, anos de ouro para não poucos. Falso paradoxo, porque há uma conexão – que o autor não aponta – entre os dois aspectos desses “anos”: foram de ouro para “não poucos” porque “de chumbo” para muitos, que ele sequer menciona. Há farta evidência de que o “Milagre brasileiro” – a fábrica do “ouro” desses anos – custou à esmagadora maioria da classe trabalhadora brasileira o “chumbo” do arrocho salarial, dos serviços públicos degradados e outras mazelas que se ausentaram da memória do professor.
Em suma, jogar o foco da análise de um processo de cruenta disputa política numa sociedade civil metafísica, descarnada, sem conexões com classes e categorias sociais portadoras de projetos classistas é induzir o respeitável público à mistificação da história. Uma abordagem que falseia o estado atual do conhecimento e não o faz avançar um milímetro sequer. Parafraseando o professor Aarão Reis, ela ”não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular”.

A anistia historiográfica


Demian Melo

No dia 29 de março deste ano cerca de trezentas pessoas reuniram-se na frente da sede do Clube Militar para protestar contra um evento de exaltação dos 48 anos do golpe de 1964 e da ditadura. O resultado pode ser visto nas cenas gravadas pelos próprios manifestantes e que estão circulando pelas redes sociais e também nos sítios dos jornais. A repressão por parte da Polícia Militar, que disparou bombas contra manifestantes e utilizou até uma arma de eletro-choque para dispersar e intimidá-los, marcou aquela tarde de quinta no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Menos de dois dias depois, o jornal O Globo –um dos protagonistas do golpe de Estado responsável por mais de vinte anos de ditadura no país – nos trouxe mais um artigo do historiador Daniel Aarão Reis, do prestigiado Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
No texto é reproduzida parte das idéias que o pesquisador vem divulgado há mais ou menos uma década em livros, artigos em revistas acadêmicas ou de divulgação científica, jornais e outros veículos. Sua sedutora tese é a de que devemos entender que, ao contrário de um certo “senso comum”, a ditadura civil-militar de 1964 teve respaldo na sociedade. Em toda a produção recente do pesquisador ele reprisa a ideia de que a sociedade apoiou o regime autoritário e que, por isso, devemos ser mais cautelosos em colocar a “culpa” daqueles anos terríveis apenas nos “militares”. Afinal, não é possível “vitimizar a sociedade”, como gosta de escrever Daniel.
É simplesmente insólito ter de lembrar ao ex-guerrilheiro – supostamente versado nas ciências sociais – que essa tal “sociedade” não é algo homogêneo, nem deve ser analisada por historiadores como se fosse uma pessoa, que em bloco teria apoiado (ou não) a ditadura. Em 1964 o Brasil era uma sociedade divida em classes sociais, seguiu e segue dividida. E como nos ensina outro especialista na matéria, Renato Lemos, historiador da UFRJ, é necessário ter em conta a responsabilidade dos agentes no processo político brasileiro, pois não é possível esquecer que houve os que deram o golpe e os que sofreram, os que torturaram e os que foram torturados, os que mataram e os que morreram.[i] Fazer longos relatos sobre o apoio de “civis” a ditadura, lembrando das marchas pelo golpe, ou qualquer outra manifestação de apoio “civil” àquele regime, apresentados de maneira unilateral e convenientemente esquecendo que apenas os setores pró-ditadura podiam se manifestar apenas obscurece que uma parcela da sociedade golpeou o restante dessa mesma sociedade.
Criar essa fantasia de que “a sociedade apoiou o autoritarismo” não nos ajuda a identificar quem, de fato, apoiou e foi responsável por essas ações. É necessário entender o sentido da ditadura, suas relações com o contexto latino-americano e, mais que isso, seu sentido de classe. Como fica claro no belíssimo documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski (Brasil, 2009), os “civis” envolvidos com a ditadura são pessoas com endereço, CPF, identificáveis muito mais como pertencentes a uma classe social que (é difícil provar o contrário) foi a principal beneficiária daquele regime de exceção que inaugurou a flexibilização das relações de trabalho (com o fim da estabilidade por tempo de serviço nas empresas privadas). No mesmo sentido seguem as já clássicas obras de René Armand Dreifuss (1964, aconquista do Estado, de 1981) e de Moniz Bandeira (O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil, já em sua 8ª edição de 2010), que provam com detalhes como aquele regime foi gestado de forma a promover os interesses de expansão capitalista no Brasil.
O golpe foi, de fato, civil e militar. Mas a artimanha de Aarão Reis procura transformar a todos os brasileiros em civis, apenas porque contrapostos aos fardados – aliás, uma visão tipicamente militar –, para cancelar o abismo social real que separa – e ainda separa – as classes sociais, dentro e fora das casernas. O golpe foi civil e militar, sim, mas porque gestado nas entranhas faustosas de setores da grande burguesia brasileira, aliada a setores militares, com o atencioso apoio estadunidense. Empregar de forma tosca as noções de “civil” e de “sociedade”, ou mesmo “apoio social”, impede a compreensão de uma das páginas mais lamentáveis de nossa história recente.
A ditadura não foi só um regime de militares, que serviu genericamente apenas aos interesses da caserna, até porque muitos militares que defendiam a legalidade foram cassados. Alguns oficiais, artífices de 1964 e do regime que se sucedeu, eram também empresários e envolvidos com os interesses mais internacionalizados do capitalismo, como é o caso notório de Golbery do Couto e Silva e demais membros do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), entidade fundada em fins de 1961 – após a posse de Jango – que organizou, mais do que uma conspiração, um projeto de classe que tomou o aparelho de Estado em 1964. Sem dúvida, não foi só esse grupo que conspirou e ajudou a derrubar a democracia em 64 – pois a frente golpista envolveu toda sorte de reacionarismo existente na sociedade brasileira, desde a TFP até latifundiários arcaicos e pequenos comerciantes em pânico com a possível ascensão do “comunismo”. Mas não é difícil constatar que esses últimos grupos não tinham um programa de poder – como o IPES formulou bem antes do golpe – embora contribuíssem para dar volume e formar a “onda” da contra-revolução.
Este é mais um capítulo de uma polêmica que alerta para o sentido que tais proposições encerra, polêmica travada desde 2004, quando estas teses de Daniel Aarão Reis, lançadas quando se “comemoravam” os 40 anos do golpe, receberam forte ressonância nos órgãos da imprensa brasileira – essa mesma imprensa com seus esqueletos no armário não só do golpe, mas da montagem do aparelho terrorista de tortura e perseguição política  naqueles anos.

Afinal, o que tem mobilizado a juventude e velhos combatentes da esquerda brasileira em favor da investigação sobre os crimes da ditadura é o fato da Lei de Anistia ter perdoado os crimes hediondos cometidos por agentes do Estado brasileiro. Concepções como esta que estamos criticando aqui não fazem mais do que realizar uma espécie de “anistia historiográfica” da ditadura militar, culpabilizando toda a sociedade brasileira por aqueles crimes e desfazendo os elos reais entre certos militares e certos setores civis.
Talvez entendendo isso possamos continuar a protestar, não só contra os esclerosados agentes da repressão, mas também contra os capitalistas que foram seus principais beneficiários e fizeram fortuna com a brutal exploração da classe trabalhadora em mais de duas décadas.

[i] LEMOS, Renato. Anistia e crise política no Brasil pós-1964. Topoi, Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, Rio de Janeiro, n.5, set.2002, p.305.