quarta-feira, 7 de novembro de 2012


Comunicação apresentada ao colóquio O Colapso das Ditaduras, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro de 24 a 26 de outubro de 2012.

A anatomia da transição é a chave da anatomia da ditadura:
o governo Geisel e a contrarrevolução no Cone Sul da América

Renato Luís do Couto Neto e Lemos
Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O objetivo desta comunicação é apresentar algumas reflexões sobre a maneira como o general Ernesto Geisel, quando à frente do poder Executivo brasileiro, combinou a estratégia de contrarrevolução democrática no Brasil com táticas de contrarrevolução terrorista em países da América do Sul, o Chile em particular. Situam-se as reflexões no âmbito da questão relativa à maneira como certos traços do processo de transição iluminam o regime ditatorial implantado no Brasil a partir de 1964.
De acordo com documentos confidenciais produzidos pelo Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) brasileiro – atual Ministério da Defesa – e recentemente desclassificados, o general Emílio Médici, quando presidente da República (1969-1974), fez com o general Pinochet, chefe da ditadura chilena (1973-1990), um acordo de fornecimento de armas para colaborar com a repressão interna naquele país. Executado o acordo durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), o regime ditatorial brasileiro fortaleceu o seu similar vizinho com milhares de fuzis, cartuchos e outros acessórios bélicos. (O Globo - 02/07/2012)
O historiador e deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) opinou sobre o tema. Integrante da comissão parlamentar Memória, Verdade e Justiça da Câmara, que realizou, em julho de 2012, um seminário sobre a Operação Condor – como é sabido, uma articulação contrarrevolucionária dos regimes ditatoriais da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Uruguai, apoiada pelos EUA –, ele disse: “Esses documentos desmontam a visão de que Geisel seria um propulsor da abertura democrática ou que fizesse parte de uma linha dita mais humana da ditadura. Na verdade, ele tinha uma solidariedade plena com a barbárie dos regimes ditatoriais. A colaboração dele com regimes atrozes como o de Pinochet foi rápida, imediata e segura (O Globo - 02/07/2012).
Trabalhos apresentados neste Colóquio problematizaram o caráter internacional dos processos transicionais iniciados a partir da revolução portuguesa de 1974. São ressaltados, em geral, dois aspectos centrais: a posição do imperialismo como elemento estruturante do processo e as conexões entre os processos nacionais, por meio do aprendizado que as classes dominantes dos regimes ditatoriais, mas também as forças opositoras, puderam fazer, até, em “tempo real”.
Dificilmente tais enlaces poderão ser compreendidos em suas dimensões históricas e políticas mais profundas se dissociados das características e da dinâmica dos regimes dos quais partem os processos transicionais. Impetro em meu favor todos os habeas corpus preventivos possíveis contra eventuais acusações de evolucionismo e teleologismo e parafraseio Marx, dizendo que a anatomia das transições é a chave da anatomia das ditaduras. É verdade que os processos transicionais desencadeiam, desde o seu início e em cada fase, contradições novas, cujo equacionamento e superação sempre adicionam tons à luta política. Entretanto, alguns sentidos determinantes, que se ligam à luta de classes e podem variar de acordo com as peculiaridades das formações sociais, preservam as suas linhas de força estratégicas.
Assim é que no Brasil atual, onde círculos restritos da política oficial e das organizações da esquerda discutem aspectos da anistia concedida em 1979 e do terror praticado por agentes do Estado e privados a partir do golpe de 1964, tem-se a oportunidade de, ainda inspirado na metáfora de Marx, dissecar o homem para entender o macaco. A maneira como se vem discutindo majoritariamente o regime político por meio do qual, durante 25 anos, as forças armadas brasileiras bancaram a dominação burguesa no país indica que está consolidada a perspectiva liberal-democrática que dirigiu politicamente a formação de um centro conservador suficiente para garantir o êxito da transição durante as décadas de 1970 e 1980. Os supostos “legado” e “memória” da ditadura são examinados majoritariamente da ótica deste centro que, podemos dizer, constitui a expressão superestrutural do bloco histórico que construiu uma dominação hegemônica na formação social brasileira durante o processo de crise que se estendeu de 1960 a 1990.
Neste período histórico, os métodos adotados pelas classes dominantes para obstar a revolução correspondem a uma dada correlação de forças instaurada pela Segunda Guerra Mundial, ao decretar a derrota do nazi-fascismo e projetar a imagem de uma União Soviética poderosa, fazendo soar com vigor o sinal de alarme antissocialista no mundo. Em cada país, a burguesia precisou fazer o balanço de suas forças para escolher os métodos que usaria na contrarrevolução.
No Brasil do pós-guerra, ela adotou uma estratégia que combinou métodos de contrarrevolução violenta (perseguição policial ao Partido Comunista, por exemplo) com métodos que León Trotsky entendeu como a uma modalidade democrática da contrarrevolução burguesa, constante do repertório de respostas possíveis a ameaças à ordem oriundas do movimento político revolucionário de operários e camponeses.  A contrarrevolução democrática assumiu um caráter preventivo, porém violento, violência que não é apanágio exclusivo das ditaduras fascistas ou bonapartistas.
O Estado de exceção está sempre presente, como um às na manga, nas constituições democráticas. Na Alemanha de “entre guerras”, por exemplo, o recurso a medidas excepcionais já era uma realidade antes da ascensão do partido nazista. O poder que o artigo 48 da Constituição de Weimar (1919) concedia ao presidente para promulgar decretos com força de lei vinha sendo utilizado em tentativas de controlar crises econômico-financeiras e sociais, embasando medidas excepcionais que aceleravam a transferência de áreas de poder do Legislativo para o Executivo.
O regime democrático se distingue do fascismo e do bonapartismo ˗ com os quais, de resto, pode compartilhar várias características ˗, não pela existência de um Executivo forte ou pela ausência de instrumentos de domínio policial-militar, mas pela maneira como tais elementos se articulam institucionalmente na dominação de classe. Entretanto, como se sabe, a adoção de métodos jurídicos de exceção ou violentos (guerra civil aberta) tem um alto custo político em sociedades com alguma complexidade ˗ diversificação de classes, meios de comunicação privados ativos, compromissos internacionais nos campos legal, diplomático, financeiro etc.
A contrarrevolução democrática preventiva constitui uma estratégia de custo político bem mais baixo. Trata-se de prevenir a ameaça à ordem no nascedouro. Deste ponto de vista, a construção da hegemonia assume um lugar central. Mas, pelo menos até o fim da Guerra Fria, a existência do socialismo como uma alternativa real (sem jeux de mots) dificultou – praticamente, impediu – o estabelecimento de uma correlação de forças conjuntural favorável a projetos hegemônicos voltados para a produção de um consenso que garantisse estabilidade à dominação classista no Brasil. O período histórico aberto pela queda do regime ditatorial estadonovista, em 1945, estabeleceu um cenário político constrangido pela onda contrarrevolucionária que pautou as opções políticas das forças sociais envolvidas na chamada Guerra Fria. Dada a posição que o país ocupava na periferia do sistema capitalista, decorrente de seus recursos econômicos, demográficos, geopolíticos etc., a contrarrevolução democrática se instalou, ainda nos estertores regime do Estado Novo, de forma a combinar funções de preservação da ordem capitalista (que implicavam a ativação de recursos policial-militares) com o estabelecimento de um regime democrático fundado em mecanismos de controle e restrição da participação política dos trabalhadores rurais e urbanos em geral.
Percebe-se com facilidade a natureza contrarrevolucionária democrática preventiva nos projetos hegemônicos de maior peso no período. O mais incisivo neste sentido foi, seguramente, o chamado “populista”, por seu caráter de aliança ou colaboração de classes. O popular e o nacional foram elementos de solda dessa relação, projetando, para consumo dos trabalhadores urbanos e, a partir de certo momento, rurais, um perfil de sociedade isenta de clivagens classistas. Incorporar para manter a ordem, diriam os positivistas.
O projeto concorrente, liberal-associacionista, não poderia deixar de ser contrarrevolucionário. Oscilou, contudo, dada a sua representatividade restrita às frações da burguesia e às camadas médias, entre a manutenção de uma política democrática preventiva, com a ação dos aparelhos privados de hegemonia – Fundação Getúlio Vargas, Fórum Roberto Simonsen etc. –, e iniciativas golpistas, mais ou menos violentas, como as registradas em 1950, 1954, 1955 e 1961, sob a liderança de militares e civis ligados à União Democrática Nacional (UDN) e alinhados com as perspectivas e interesses do capital monopolista internacional. Foi a perspectiva liberal-associacionista, em suas linhas essenciais, que o regime ditatorial, a partir do golpe de 1964, trabalhou para viabilizar como projeto hegemônico no Brasil.
Entretanto, o caminho da ditadura para a dominação hegemônica no plano nacional foi construído em conexão com o processo contrarrevolucionário continental. A relação cronológica indica um aparente descompasso em termos de tendência da contrarrevolução em formações sociais do Cone Sul distintas. O marco inicial da transição brasileira pode ser associado à indicação do general Ernesto Geisel à sucessão do general Emílio Médici, anunciada em 18 de junho de 1973. Nove dias depois, o presidente do Uruguai, Juan Maria Bordaberry, discursava anunciando as medidas que implantariam a ditadura no país. Cerca de três meses depois, o presidente Salvador Allende era deposto e iniciada a ditadura no Chile.
A relação ativa do regime ditatorial brasileiro com a política contrarrevolucionária continental já era antiga quando tais fatos ocorreram. Basta lembrar a iminência, em 1971, de invasão – substituída pela participação em fraude eleitoral – do Uruguai diante da possibilidade de vitória de candidatos considerados adversos aos interesses do regime ditatorial brasileiro e do imperialismo. Na ocasião, a contrarrevolução brasileira se encontrava na fase terrorista e os seus dirigentes, convictos de estarem já divisando o país na pretendida condição de potência mundial, o que ajuda a entender a pretensão “subimperialista” do general Médici.
Já no caso chileno, o apoio ao golpe e à ditadura pode ser explicado pela lógica do processo de transição que iria iniciar-se no Brasil. O objetivo era consolidar os resultados estratégicos alcançados – a redução drástica do conflito político, com a erradicação das forças consideradas anticapitalistas ou nacionalistas radicais, e a retomada do processo de acumulação de capital pela via do aprofundamento da integração econômica com os centros capitalistas mundiais. Estes resultados foram percebidos como alcançados no período 1968-1973. Cabia, agora, modificar o regime político no sentido, também estratégico, de uma organização calcada no tipo de democracia que se projetava como ideal: um regime que se legitimasse eleitoralmente e fosse provido de recursos para controlar eficazmente a luta de classes. Previstas resistências à esquerda e à direita ao projeto, a mudança foi concebida como um lento e gradual processo de recomposição de forças no sentido da formação de um centro político conservador mais amplo do que aquele que sustentava a ditadura, pela aproximação entre setores do regime e da oposição moderada e exclusão das forças consideradas de “linha dura” e extrema-esquerda. Contra estas, o regime defendeu e fez avançar o projeto de transição usando todo o repertório da contrarrevolução terrorista. Para atrair aquelas, procedeu a alterações jurídico-políticas nas relações de dominação. Sempre orientado pelas formulações da doutrina de segurança nacional no referente à natureza internacional da luta de classes, alinhou-se no subcontinente sul-americano às forças contrarrevolucionárias dedicadas à defesa da ordem capitalista, terreno necessário ao florescimento do projeto de democracia restrita que deu consistência ao processo de transição política no país.
De fato, o general Ernesto Geisel, como afirmou o historiador e deputado Chico Alencar, não pertencia a “uma linha mais humana da ditadura”, porque todas as linhas do regime eram igualmente humanas e a do ex-presidente não se situava entre as mais cordiais. Ao contrário, entretanto, do que ele concluiu, a participação do governo Geisel na consolidação do regime ditatorial no Chile não contradiz o papel de “propulsor da abertura democrática” atribuído ao general pela historiografia. Em verdade, lança luz sobre a natureza apenas aparentemente contraditória do processo de transição política, que, visando defender os interesses do capital, pôde combinar o empenho na construção de um regime de tipo democrático no Brasil com a colaboração para o fortalecimento de uma ditadura em país vizinho localizado em área de interesse estratégico. 

sábado, 6 de outubro de 2012

A “ditadura civil-militar” e a reinvenção da roda historiográfica




Carta enviada ao jornal O globo como comentário ao artigo do prof. Daniel Aarão Reis “A ditadura civil-militar”, publicado no caderno Prosa & Verso de 31 de março de 2012.

Renato Luís do Couto Neto e Lemos

O artigo do professor Daniel Aarão Reis toca em pontos cruciais do enquadramento histórico do golpe de 1964 e do regime político que a partir dele se construiu. Trata-se de texto que suscita inúmeras reflexões, infelizmente demasiadamente numerosas para o espaço desta carta. O autor desfruta de elevada posição no meio acadêmico, em especial junto a jovens historiadores, o que justifica a seleção de um tópico em particular para discussão.
O professor inicia o artigo afirmando: “Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de ‘ditadura militar’. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular”. 
Desde logo, me parece que constitui simplismo reduzir uma classificação que sintetiza interpretações de processos históricos complexos a um fenômeno de memória resultante da rotina e da pobreza cognitiva. Por que entender a expressão “ditadura militar” como produto da memória e não, também e principalmente, de um conhecimento construído de acordo com premissas teórico-ideológicas sistemáticas? Aliás, ele mesmo tangencia este aspecto, embora de maneira apenas descritiva, quando aponta quem, do seu ponto de vista, teria interesses em defender o uso da expressão. Ela é, de fato, fraca em termos explicativos, mas a que ele escolhe como alternativa não é muito mais forte.  Há indicações em depoimentos de época, artigo e livros produzidos – alguns, há mais de 40 anos – que nos permitem apontar a insuficiência da adjetivação do golpe de 1964 e do regime que a partir dele se instalou no país como “civil-militar.”
Embora já se tenha, a respeito, um conhecimento estabelecido teórica e empiricamente na historiografia, à medida que o tempo nos distancia dos fatos algumas revisões interpretativas se dedicam a reinventar a roda. Nos registros dos 40 anos do Ato Institucional n. 5 (13/12/1968), na atual discussão sobre a lei de anistia e no artigo do professor Aarão Reis em questão, trata-se como a última descoberta nos estudos sobre o golpe e a ditadura a informação de que tanto a derrubada do presidente João Goulart quanto a sustentação do regime que se seguiu contaram com “apoio civil”. Tal constatação, trivial para quem viveu os fatos ou começou a estudá-los já em priscas eras, pode parecer um avanço interpretativo, se comparado com a redução do golpe e da ditadura ao seu componente militar, operação, de fato, muito adequada a setores civis preocupados em negar a sua participação neles. Constitui, no entanto, um freio na elucidação do seu sentido histórico, porque dilui na vaga categoria “civil” o conteúdo classista do golpe e da ditadura, sobejamente conhecido. Civis – administradores, bancários, camponeses, economistas, empresários, escritores, estudantes, jornalistas, juristas, operários, políticos, professores etc. – houve, desigualmente, entre vencedores e derrotados, entre torturadores e torturados, entre beneficiados e prejudicados pelo golpe e pela ditadura. O apoio civil ao golpe e à ditadura – há muito reconhecido por analistas minimamente sérios – é uma informação muito utilizada por segmentos militares para legitimá-los – ao golpe e à ditadura. Para se distinguir dos intelectuais orgânicos do regime, cabe qualificar esse “apoio”, enfatizando que não se tratou de um golpe ou uma ditadura “apoiados” por civis, mas de uma operação política de uma parte da sociedade – que incluía civis e militares − contra outra −  que, igualmente, envolvia civis e militares.
Reiterar a informação do “apoio civil”, conferindo-lhe o status de novidade historiográfica, estimula os interessados em geral, e os jovens historiadores em particular, a adotarem uma abordagem temerosa de ir a fundo na conexão dos eventos em questão com poderosos interesses classistas, cujo momento de fastígio em termos de usufruto material do poder (1968-1973) o autor vê como paradoxal: “Paradoxalmente, os chamados anos de chumbo. Porque foram também, e ao mesmo tempo, anos de ouro para não poucos. Falso paradoxo, porque há uma conexão – que o autor não aponta – entre os dois aspectos desses “anos”: foram de ouro para “não poucos” porque “de chumbo” para muitos, que ele sequer menciona. Há farta evidência de que o “Milagre brasileiro” – a fábrica do “ouro” desses anos – custou à esmagadora maioria da classe trabalhadora brasileira o “chumbo” do arrocho salarial, dos serviços públicos degradados e outras mazelas que se ausentaram da memória do professor.
Em suma, jogar o foco da análise de um processo de cruenta disputa política numa sociedade civil metafísica, descarnada, sem conexões com classes e categorias sociais portadoras de projetos classistas é induzir o respeitável público à mistificação da história. Uma abordagem que falseia o estado atual do conhecimento e não o faz avançar um milímetro sequer. Parafraseando o professor Aarão Reis, ela ”não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular”.

A anistia historiográfica


Demian Melo

No dia 29 de março deste ano cerca de trezentas pessoas reuniram-se na frente da sede do Clube Militar para protestar contra um evento de exaltação dos 48 anos do golpe de 1964 e da ditadura. O resultado pode ser visto nas cenas gravadas pelos próprios manifestantes e que estão circulando pelas redes sociais e também nos sítios dos jornais. A repressão por parte da Polícia Militar, que disparou bombas contra manifestantes e utilizou até uma arma de eletro-choque para dispersar e intimidá-los, marcou aquela tarde de quinta no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Menos de dois dias depois, o jornal O Globo –um dos protagonistas do golpe de Estado responsável por mais de vinte anos de ditadura no país – nos trouxe mais um artigo do historiador Daniel Aarão Reis, do prestigiado Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
No texto é reproduzida parte das idéias que o pesquisador vem divulgado há mais ou menos uma década em livros, artigos em revistas acadêmicas ou de divulgação científica, jornais e outros veículos. Sua sedutora tese é a de que devemos entender que, ao contrário de um certo “senso comum”, a ditadura civil-militar de 1964 teve respaldo na sociedade. Em toda a produção recente do pesquisador ele reprisa a ideia de que a sociedade apoiou o regime autoritário e que, por isso, devemos ser mais cautelosos em colocar a “culpa” daqueles anos terríveis apenas nos “militares”. Afinal, não é possível “vitimizar a sociedade”, como gosta de escrever Daniel.
É simplesmente insólito ter de lembrar ao ex-guerrilheiro – supostamente versado nas ciências sociais – que essa tal “sociedade” não é algo homogêneo, nem deve ser analisada por historiadores como se fosse uma pessoa, que em bloco teria apoiado (ou não) a ditadura. Em 1964 o Brasil era uma sociedade divida em classes sociais, seguiu e segue dividida. E como nos ensina outro especialista na matéria, Renato Lemos, historiador da UFRJ, é necessário ter em conta a responsabilidade dos agentes no processo político brasileiro, pois não é possível esquecer que houve os que deram o golpe e os que sofreram, os que torturaram e os que foram torturados, os que mataram e os que morreram.[i] Fazer longos relatos sobre o apoio de “civis” a ditadura, lembrando das marchas pelo golpe, ou qualquer outra manifestação de apoio “civil” àquele regime, apresentados de maneira unilateral e convenientemente esquecendo que apenas os setores pró-ditadura podiam se manifestar apenas obscurece que uma parcela da sociedade golpeou o restante dessa mesma sociedade.
Criar essa fantasia de que “a sociedade apoiou o autoritarismo” não nos ajuda a identificar quem, de fato, apoiou e foi responsável por essas ações. É necessário entender o sentido da ditadura, suas relações com o contexto latino-americano e, mais que isso, seu sentido de classe. Como fica claro no belíssimo documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski (Brasil, 2009), os “civis” envolvidos com a ditadura são pessoas com endereço, CPF, identificáveis muito mais como pertencentes a uma classe social que (é difícil provar o contrário) foi a principal beneficiária daquele regime de exceção que inaugurou a flexibilização das relações de trabalho (com o fim da estabilidade por tempo de serviço nas empresas privadas). No mesmo sentido seguem as já clássicas obras de René Armand Dreifuss (1964, aconquista do Estado, de 1981) e de Moniz Bandeira (O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil, já em sua 8ª edição de 2010), que provam com detalhes como aquele regime foi gestado de forma a promover os interesses de expansão capitalista no Brasil.
O golpe foi, de fato, civil e militar. Mas a artimanha de Aarão Reis procura transformar a todos os brasileiros em civis, apenas porque contrapostos aos fardados – aliás, uma visão tipicamente militar –, para cancelar o abismo social real que separa – e ainda separa – as classes sociais, dentro e fora das casernas. O golpe foi civil e militar, sim, mas porque gestado nas entranhas faustosas de setores da grande burguesia brasileira, aliada a setores militares, com o atencioso apoio estadunidense. Empregar de forma tosca as noções de “civil” e de “sociedade”, ou mesmo “apoio social”, impede a compreensão de uma das páginas mais lamentáveis de nossa história recente.
A ditadura não foi só um regime de militares, que serviu genericamente apenas aos interesses da caserna, até porque muitos militares que defendiam a legalidade foram cassados. Alguns oficiais, artífices de 1964 e do regime que se sucedeu, eram também empresários e envolvidos com os interesses mais internacionalizados do capitalismo, como é o caso notório de Golbery do Couto e Silva e demais membros do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), entidade fundada em fins de 1961 – após a posse de Jango – que organizou, mais do que uma conspiração, um projeto de classe que tomou o aparelho de Estado em 1964. Sem dúvida, não foi só esse grupo que conspirou e ajudou a derrubar a democracia em 64 – pois a frente golpista envolveu toda sorte de reacionarismo existente na sociedade brasileira, desde a TFP até latifundiários arcaicos e pequenos comerciantes em pânico com a possível ascensão do “comunismo”. Mas não é difícil constatar que esses últimos grupos não tinham um programa de poder – como o IPES formulou bem antes do golpe – embora contribuíssem para dar volume e formar a “onda” da contra-revolução.
Este é mais um capítulo de uma polêmica que alerta para o sentido que tais proposições encerra, polêmica travada desde 2004, quando estas teses de Daniel Aarão Reis, lançadas quando se “comemoravam” os 40 anos do golpe, receberam forte ressonância nos órgãos da imprensa brasileira – essa mesma imprensa com seus esqueletos no armário não só do golpe, mas da montagem do aparelho terrorista de tortura e perseguição política  naqueles anos.

Afinal, o que tem mobilizado a juventude e velhos combatentes da esquerda brasileira em favor da investigação sobre os crimes da ditadura é o fato da Lei de Anistia ter perdoado os crimes hediondos cometidos por agentes do Estado brasileiro. Concepções como esta que estamos criticando aqui não fazem mais do que realizar uma espécie de “anistia historiográfica” da ditadura militar, culpabilizando toda a sociedade brasileira por aqueles crimes e desfazendo os elos reais entre certos militares e certos setores civis.
Talvez entendendo isso possamos continuar a protestar, não só contra os esclerosados agentes da repressão, mas também contra os capitalistas que foram seus principais beneficiários e fizeram fortuna com a brutal exploração da classe trabalhadora em mais de duas décadas.

[i] LEMOS, Renato. Anistia e crise política no Brasil pós-1964. Topoi, Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, Rio de Janeiro, n.5, set.2002, p.305.