Comunicação apresentada ao colóquio O Colapso das Ditaduras, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro de 24 a 26 de outubro de 2012.
A anatomia da transição
é a chave da anatomia da ditadura:
o governo Geisel e a
contrarrevolução no Cone Sul da América
Renato Luís do Couto Neto e Lemos
Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro
O objetivo desta comunicação é apresentar algumas reflexões
sobre a maneira como o general Ernesto Geisel, quando à frente do poder
Executivo brasileiro, combinou a estratégia de contrarrevolução democrática no
Brasil com táticas de contrarrevolução terrorista em países da América do Sul,
o Chile em particular. Situam-se as reflexões no âmbito da questão relativa à maneira
como certos traços do processo de transição iluminam o regime ditatorial
implantado no Brasil a partir de 1964.
De acordo com documentos confidenciais produzidos pelo Estado-Maior
das Forças Armadas (EMFA) brasileiro – atual Ministério da Defesa – e
recentemente desclassificados, o general Emílio Médici, quando presidente da
República (1969-1974), fez com o general Pinochet, chefe da ditadura chilena
(1973-1990), um acordo de fornecimento de armas para colaborar com a repressão
interna naquele país. Executado o acordo durante o governo do general Ernesto
Geisel (1974-1979), o regime ditatorial brasileiro fortaleceu o seu similar
vizinho com milhares de fuzis, cartuchos e outros acessórios bélicos. (O Globo
- 02/07/2012)
O historiador e deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) opinou sobre
o tema. Integrante da comissão parlamentar Memória, Verdade e Justiça da
Câmara, que realizou, em julho de 2012, um seminário sobre a Operação Condor –
como é sabido, uma articulação contrarrevolucionária dos regimes ditatoriais da
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Uruguai, apoiada pelos EUA –, ele disse: “Esses
documentos desmontam a visão de que Geisel seria um propulsor da abertura
democrática ou que fizesse parte de uma linha dita mais humana da ditadura. Na
verdade, ele tinha uma solidariedade plena com a barbárie dos regimes
ditatoriais. A colaboração dele com regimes atrozes como o de Pinochet foi
rápida, imediata e segura (O Globo - 02/07/2012).
Trabalhos apresentados neste Colóquio problematizaram o
caráter internacional dos processos transicionais iniciados a partir da
revolução portuguesa de 1974. São ressaltados, em geral, dois aspectos
centrais: a posição do imperialismo como elemento estruturante do processo e as
conexões entre os processos nacionais, por meio do aprendizado que as classes
dominantes dos regimes ditatoriais, mas também as forças opositoras, puderam
fazer, até, em “tempo real”.
Dificilmente tais enlaces poderão ser compreendidos em suas
dimensões históricas e políticas mais profundas se dissociados das
características e da dinâmica dos regimes dos quais partem os processos
transicionais. Impetro em meu favor todos os habeas corpus preventivos
possíveis contra eventuais acusações de evolucionismo e teleologismo e
parafraseio Marx, dizendo que a anatomia das transições é a chave da anatomia
das ditaduras. É verdade que os processos transicionais desencadeiam, desde o
seu início e em cada fase, contradições novas, cujo equacionamento e superação
sempre adicionam tons à luta política. Entretanto, alguns sentidos
determinantes, que se ligam à luta de classes e podem variar de acordo com as
peculiaridades das formações sociais, preservam as suas linhas de força
estratégicas.
Assim é que no Brasil
atual, onde círculos restritos da política oficial e das organizações da
esquerda discutem aspectos da anistia concedida em 1979 e do terror praticado
por agentes do Estado e privados a partir do golpe de 1964, tem-se a
oportunidade de, ainda inspirado na metáfora de Marx, dissecar o homem para
entender o macaco. A maneira como se vem discutindo majoritariamente o regime
político por meio do qual, durante 25 anos, as forças armadas brasileiras bancaram
a dominação burguesa no país indica que está consolidada a perspectiva
liberal-democrática que dirigiu politicamente a formação de um centro
conservador suficiente para garantir o êxito da transição durante as décadas de
1970 e 1980. Os supostos “legado” e “memória” da ditadura são examinados majoritariamente
da ótica deste centro que, podemos dizer, constitui a expressão superestrutural
do bloco histórico que construiu uma dominação hegemônica na formação social
brasileira durante o processo de crise que se estendeu de 1960 a 1990.
Neste período
histórico, os métodos adotados pelas classes dominantes para obstar a revolução
correspondem a uma dada correlação de forças instaurada pela Segunda Guerra
Mundial, ao decretar a derrota do nazi-fascismo e projetar a imagem de uma
União Soviética poderosa, fazendo soar com vigor o sinal de alarme antissocialista
no mundo. Em cada país, a burguesia precisou fazer o balanço de suas forças
para escolher os métodos que usaria na contrarrevolução.
No Brasil do pós-guerra,
ela adotou uma estratégia que combinou métodos de contrarrevolução violenta
(perseguição policial ao Partido Comunista, por exemplo) com métodos que León Trotsky
entendeu como a uma modalidade democrática da contrarrevolução burguesa,
constante do repertório de respostas possíveis a ameaças à ordem oriundas do
movimento político revolucionário de operários e camponeses. A contrarrevolução democrática assumiu um
caráter preventivo, porém violento, violência que não é apanágio exclusivo das ditaduras
fascistas ou bonapartistas.
O Estado de exceção
está sempre presente, como um às na manga, nas constituições democráticas. Na
Alemanha de “entre guerras”, por exemplo, o recurso a medidas excepcionais já
era uma realidade antes da ascensão do partido nazista. O poder que o artigo 48
da Constituição de Weimar (1919) concedia ao presidente para promulgar decretos
com força de lei vinha sendo utilizado em tentativas de controlar crises
econômico-financeiras e sociais, embasando medidas excepcionais que aceleravam
a transferência de áreas de poder do Legislativo para o Executivo.
O regime democrático se
distingue do fascismo e do bonapartismo ˗ com os quais, de resto, pode compartilhar
várias características ˗, não pela existência de um Executivo forte ou pela
ausência de instrumentos de domínio policial-militar, mas pela maneira como
tais elementos se articulam institucionalmente na dominação de classe.
Entretanto, como se sabe, a adoção de métodos jurídicos de exceção ou violentos
(guerra civil aberta) tem um alto custo político em sociedades com alguma
complexidade ˗ diversificação de classes, meios de comunicação privados ativos,
compromissos internacionais nos campos legal, diplomático, financeiro etc.
A contrarrevolução
democrática preventiva constitui uma estratégia de custo político bem mais baixo.
Trata-se de prevenir a ameaça à ordem no nascedouro. Deste ponto de vista, a
construção da hegemonia assume um lugar central. Mas, pelo menos até o fim da
Guerra Fria, a existência do socialismo como uma alternativa real (sem jeux de mots) dificultou – praticamente,
impediu – o estabelecimento de uma correlação de forças conjuntural favorável a
projetos hegemônicos voltados para a produção de um consenso que garantisse
estabilidade à dominação classista no Brasil. O período histórico aberto pela
queda do regime ditatorial estadonovista, em 1945, estabeleceu um cenário
político constrangido pela onda contrarrevolucionária que pautou as opções
políticas das forças sociais envolvidas na chamada Guerra Fria. Dada a posição
que o país ocupava na periferia do sistema capitalista, decorrente de seus
recursos econômicos, demográficos, geopolíticos etc., a contrarrevolução democrática
se instalou, ainda nos estertores regime do Estado Novo, de forma a combinar
funções de preservação da ordem capitalista (que implicavam a ativação de
recursos policial-militares) com o estabelecimento de um regime democrático fundado
em mecanismos de controle e restrição da participação política dos
trabalhadores rurais e urbanos em geral.
Percebe-se com
facilidade a natureza contrarrevolucionária democrática preventiva nos projetos
hegemônicos de maior peso no período. O mais incisivo neste sentido foi, seguramente,
o chamado “populista”, por seu caráter de aliança ou colaboração de classes. O
popular e o nacional foram elementos de solda dessa relação, projetando, para
consumo dos trabalhadores urbanos e, a partir de certo momento, rurais, um
perfil de sociedade isenta de clivagens classistas. Incorporar para manter a
ordem, diriam os positivistas.
O projeto concorrente,
liberal-associacionista, não poderia deixar de ser contrarrevolucionário.
Oscilou, contudo, dada a sua representatividade restrita às frações da
burguesia e às camadas médias, entre a manutenção de uma política democrática
preventiva, com a ação dos aparelhos privados de hegemonia – Fundação Getúlio Vargas,
Fórum Roberto Simonsen etc. –, e iniciativas golpistas, mais ou menos
violentas, como as registradas em 1950, 1954, 1955 e 1961, sob a liderança de
militares e civis ligados à União Democrática Nacional (UDN) e alinhados com as
perspectivas e interesses do capital monopolista internacional. Foi a
perspectiva liberal-associacionista, em suas linhas essenciais, que o regime
ditatorial, a partir do golpe de 1964, trabalhou para viabilizar como projeto
hegemônico no Brasil.
Entretanto, o caminho
da ditadura para a dominação hegemônica no plano nacional foi construído em conexão
com o processo contrarrevolucionário continental. A relação cronológica indica
um aparente descompasso em termos de tendência da contrarrevolução em formações
sociais do Cone Sul distintas. O marco inicial da transição brasileira pode ser
associado à indicação do general Ernesto Geisel à sucessão do general Emílio
Médici, anunciada em 18 de junho de 1973. Nove dias depois, o presidente do
Uruguai, Juan Maria Bordaberry, discursava anunciando as medidas que
implantariam a ditadura no país. Cerca de três meses depois, o presidente
Salvador Allende era deposto e iniciada a ditadura no Chile.
A relação ativa do
regime ditatorial brasileiro com a política contrarrevolucionária continental
já era antiga quando tais fatos ocorreram. Basta lembrar a iminência, em 1971, de
invasão – substituída pela participação em fraude eleitoral – do Uruguai diante
da possibilidade de vitória de candidatos considerados adversos aos interesses
do regime ditatorial brasileiro e do imperialismo. Na ocasião, a
contrarrevolução brasileira se encontrava na fase terrorista e os seus
dirigentes, convictos de estarem já divisando o país na pretendida condição de
potência mundial, o que ajuda a entender a pretensão “subimperialista” do
general Médici.
Já no caso chileno, o
apoio ao golpe e à ditadura pode ser explicado pela lógica do processo de
transição que iria iniciar-se no Brasil. O objetivo era consolidar os
resultados estratégicos alcançados – a redução drástica do conflito político,
com a erradicação das forças consideradas anticapitalistas ou nacionalistas
radicais, e a retomada do processo de acumulação de capital pela via do
aprofundamento da integração econômica com os centros capitalistas mundiais.
Estes resultados foram percebidos como alcançados no período 1968-1973. Cabia,
agora, modificar o regime político no sentido, também estratégico, de uma
organização calcada no tipo de democracia que se projetava como ideal: um
regime que se legitimasse eleitoralmente e fosse provido de recursos para
controlar eficazmente a luta de classes. Previstas resistências à esquerda e à
direita ao projeto, a mudança foi concebida como um lento e gradual processo de
recomposição de forças no sentido da formação de um centro político conservador
mais amplo do que aquele que sustentava a ditadura, pela aproximação entre
setores do regime e da oposição moderada e exclusão das forças consideradas de
“linha dura” e extrema-esquerda. Contra estas, o regime defendeu e fez avançar
o projeto de transição usando todo o repertório da contrarrevolução terrorista.
Para atrair aquelas, procedeu a alterações jurídico-políticas nas relações de
dominação. Sempre orientado pelas formulações da doutrina de segurança nacional
no referente à natureza internacional da luta de classes, alinhou-se no
subcontinente sul-americano às forças contrarrevolucionárias dedicadas à defesa
da ordem capitalista, terreno necessário ao florescimento do projeto de
democracia restrita que deu consistência ao processo de transição política no
país.
De fato, o general
Ernesto Geisel, como afirmou o historiador e deputado Chico Alencar, não
pertencia a “uma linha mais humana da ditadura”, porque todas as linhas do
regime eram igualmente humanas e a do ex-presidente não se situava entre as
mais cordiais. Ao contrário, entretanto, do que ele concluiu, a participação do
governo Geisel na consolidação do regime ditatorial no Chile não contradiz o
papel de “propulsor da abertura democrática” atribuído ao general pela
historiografia. Em verdade, lança luz sobre a natureza apenas aparentemente
contraditória do processo de transição política, que, visando defender os
interesses do capital, pôde combinar o empenho na construção de um regime de
tipo democrático no Brasil com a colaboração para o fortalecimento de uma
ditadura em país vizinho localizado em área de interesse estratégico.